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através,
exposição de amelia brandeli
Guilherme Dable

A linguística nos diz que do adjetivo justaposto diz-se da oração que se junta a outra sem uso de conectivo. O substantivo feminino justaposição é a reunião, em uma só palavra com significado independente, de palavras distintas que conservam, cada uma, sua integridade fonética, como laranja-pêra, porta-malas, madrepérola. É a situação de adjacência ou contiguidade em que se encontram duas coisas, sem que nada as separe. Em Através, exposição da artista Amélia Brandelli na galeria do Goethe-Institut de Porto Alegre, isso ocorre nos procedimentos que a artista lança mão em seus trabalhos.

Ao entrarmos na galeria, deparamo-nos com uma serie de fotografias. Mas não exatamente fotografias, não apenas fotografias. Em Através, Amélia justapõe imagens de diferentes naturezas com interferências de outros materiais, como fórmica e acrílico. O primeiro trabalho, à esquerda, nos apresenta uma imagem de natureza, uma árvore com poucas folhas, impressa em um papel cinza que aumenta essa sensação outonal, fria, da árvore com os galhos secos, e uma área cinza se estende até a outra imagem, justaposta, de uma jovem loira, olhando para baixo, mordendo o polegar, aparentemente distraída ou, pelo menos, inconsciente do fato de estar sendo fotografada. O close do seu rosto, com os pixels da foto estourados, nos remetem às imagens de softwares de comunicação digital, como o Skype. Há, também, uma lâmina de acrílico azulado que se sobrepõe entre as duas imagens, cobrindo parcialmente o rosto da jovem e a área cinza da imagem da árvore, tingindo essa área nesse tom azulado. Ao longo da exposição, o que encontramos são imagens de natureza justapostas a esses registros digitais, íntimos: um rapaz dormindo, um olhar desinteressado, um rosto na sombra, sempre aparentemente capturados por uma webcam, às vezes acompanhados de uma grande área preta, de um material que parece fórmica brilhante, algumas vezes fazendo um ângulo, quebrando a planaridade do trabalho.

           

Olhando retrospectivamente, o trabalho de Amélia apresenta fortes questões narrativas – porém, sempre obliteradas, sempre disfarçadas. Os autorretratos dos anos 90 deram lugar a uma produção onde a pintura granhou tridimensionalidade, transformando-se em objeto; ali, a materialidade da tinta desafiava a nossa percepção, sendo também substituída por sutilezas como um enorme vidro, escorado na parede, tingindo esta última com uma delicada mas presente camada de azul claro. A fisicalidade da tinta era, ali, substituída pela presença e pelo peso do vidro, apenas encostado na parede, tensionando a beleza da cor que derramava-se na parede expositiva com o iminente desastre daquela enorme chapa escorregar e espatifar-se no chão. Essa serie de trabalhos ainda trazia textos adesivados ao lado das pinturas/objetos, como “Perdeu-se a nuvem sobre a ponte estreita, um brilho frio desliza pelas ruas”.

           

A objetidade segue presente no trabalho de Amélia – se ela não se dá mais na forma de gaveteiros que não abrem, ou de mesas que refletem nossa imagem. Sentimos essa presença que se impõe sobre nós nas grandes áreas pretas que refletem nossa imagem ao contemplarmos os trabalhos. Em um deles, ao percorrermos com o olhar essa superfície reflexiva, nos deparando com a imagem do nosso corpo dentro do trabalho, somos surpreendidos pelo olhar desinteressado da jovem loira. Ela parece olhar através de nós. Ela não está ali. Em outro, a angulação da fórmica fratura o reflexo, da mesma forma que a justaposição de uma imagem de um jovem dormindo com um horizonte brumoso forma uma narrativa fraturada – e quando Amélia nos narra algo, ela não parece nos querer contar, mas sugerir: é nessa espécie de koan* que ela nos leva a intuir um sentido, que não nos é dado por uma racionalidade. E a marca aparente da junção entre uma imagem e outra, ou mesmo a moldura de acrílico azul em um dos trabalhos – uma foto panorâmica de natureza, distante, e mais nada, sempre há algo que nos desconcerta de alguma forma, que nos desafia. Desafio que me lembrou os experimentos narrativos – e, por que não, estilísticos, nos seus experimentos com formatos – do cineasta David Lynch. E há também um aparente desinteresse das imagens: as fotos de natureza não parecem “artísticas”, mas documentais, despretensiosas em qualidades estéticas. Fico sabendo, posteriormente, que essas imagens provêm de um banco de imagens de uma empresa de análise de impacto ambiental, que não foram capturadas pela artista no local.

           

E, uma vez sabendo que os retratos são, em sua maioria, imagens dos filhos da artista, podemos estabelecer uma serie de conexões com a produção pregressa de Amélia, principalmente em relação aos autorretratos. Se ter filhos é uma maneira de buscar um tipo de continuidade, de imortalidade, podemos pensar na intimidade dessas imagens como uma espécie de memento mori, atualizando a tradição da pintura de lembrar a mortalidade. Ao invés de uma caveira, uma nova vida, uma vida gerada pela vida da artista. Falando em pintura, ela aparece aqui, seja nos enormes pixels dos retratos, seja nos jogos entre brilho e opacidade, ou ainda nos campos de cor que a artista apresenta – pretos e brilhantes, ou azulados e translúcidos, ou ainda intensamente azul, colocado ao lado de outro retrato, onde uma jovem olha para baixo e o tom magenta da imagem faz esse campo de acrílico azul – um nem tão improvável encontro entre um material que poderia servir a Donald Judd com uma luminosidade que interessava a Yves Klein – vibrar ainda mais, indissociando ele da imagem fotográfica, que ainda é acompanhada de uma terceira imagem, outro horizonte enevoado, que nos remete às questões românticas de artistas como Caspar David Friedrich. O retorno à natureza, as imagens dos filhos – são ciclos que se apresentam diante de nós, talvez? Vejo, talvez, como um convite à sedução dos sentidos, um convite a criarmos nossas próprias narrativas, mesmo sabendo que elas irão, inevitavelmente, encontrar-se em um beco sem saída, como se tentássemos ouvir o som de palmas feitas por apenas uma mão.

* Kōan consiste em uma história, diálogo, questão ou afirmaçã cujo significado não é alcançado pelo pensamento racional, mas pode ser acessível através da intuição. “… no começo um monge pode pensar que pensar que um koan é um objeto inerte e que deve focar sua atenção nele; após um longo período de consecutivas repetições, ele percebe que o koan é também uma atividade dinâmica, a atividade de procurar a resposta para o koan. O koan é tanto o objeto que se procura quanto a incansável busca em si mesma. Em um koan, o eu se enxerga não diretamente, mas sob o aspecto do koan… Quando alguém percebe e torna real essa identidade, então as duas mãos se tornam uma. O praticante se torna o koan que ele ou ela está tentando entender. Este é o som de uma mão” — G. Victor Sogen Hori, Translating the Zen Phrase Book

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