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através
Laura Cattani
2009

Assim como Robert Smithson fala que “é impossível evitar o pensamento lamacento quando se trata de projetos de terra”[1], é impossível evitar um pensamento errante, melancólico, quando se trata da obra de Amélia Brandelli. Esse pensamento vaga, percorre, busca e se transforma. Somos transportados a outro lugar, mas também a outras relações sensíveis, outros afetos, outras lembranças. Assim como as paisagens trazem em si o desejo de estar presente, de contemplar, as imagens de pessoas, pixeladas, remetem ao universo virtual, às comunicações à distância – estas também fortemente imbuídas do desejo de transportar-se e relacionar-se, de conviver. Esses desejos parecem permear a obra de Amélia, que se refere à escolha de seus materiais, entre outros, por sua ‘sensualidade’ – seja ela tátil ou visual. Mas pode referir-se também ao desejo da presença, do “estar junto” – desejo este que está na própria essência da origem do fazer artístico, como atesta o mito de Dibutades, contado por Plínio, o Velho. Neste, que é considerado um mito sobre o surgimento da pintura, do desenho e da escultura, uma jovem, filha do oleiro Dibutades, traça com carvão, na parede, a sombra do jovem amado, prestes a sair para a guerra, como uma forma de guardar sua imagem. Dibutades preenche então o contorno com argila, criando um relevo que representava o rapaz, como forma de compensar, ainda que simbolicamente, sua ausência.

Essa relação talvez seja evidenciada pela exploração que a artista faz das questões relativas à pintura, não apenas no que diz respeito à cor, superfície e suporte, mas também ao próprio cerne da origem da representação pictórica – que aqui assume um caráter de apresentação, ou presentificação (lugares e memórias transpostos ao presente, à experiência, à vivência) – mas também de preservação de um momento fugaz (diversos procedimentos e artefatos foram construídos, no decorrer da história para, de alguma forma, tentar encapsular o tempo, resguardar a memória, e a pintura, a fotografia, tem também aí sua origem).

Podemos aproximar as paisagens, tomadas por água ou neblina, daquelas criadas por Turner – ainda que imbuídas de uma forte melancolia (aqui, “paisagem” pode ser entendida de uma forma mais ampla, onde aspectos físicos e emocionais estão sobrepostos). Turner é um dos precursores de uma certa desmaterialização da paisagem, e pode-se traçar, partindo de Turner, um caminho que se bifurca. Num primeiro momento, através do impressionismo, a fugacidade do presente vai progressivamente levando ao abandono das noções clássicas de realidade, chegando-se com Kandinski à pura abstração lírica. Uma das transversalidades deste processo resulta no abstracionismo geométrico de Piet Mondrian ou Max Bill, por exemplo, que criam uma abstração a partir de formas regulares. Essa tradição tem forte influência na Arte brasileira, através dos concretos e neoconcretos – até contemporâneos como Carlos Fajardo ou Iran do Espírito Santo (que Amélia cita como algumas de suas influências). As obras da exposição “Através” equacionam, como uma teoria poética, esta genealogia, colocando lado a lado tanto a paisagem e o retrato (outra tradição pictórica) quanto a abstração geométrica de planos de cores. Tempos distintos da anacrônica História da Arte interagindo em um momento plástico.

Assim como a representação de paisagens é uma construção, uma invenção do séc. XVII[2], a imagem pixelada é uma construção do séc XX, sendo a própria codificação tecnológica assumida como uma forma de realidade. O pixelamento da imagem refere-se a um processo de captação da imagem, um meio com um fim específico ao qual é inerente essa resolução da imagem limitada por condições técnicas de transmissão de dados. Os aparatos técnicos, por sua própria natureza e limitações, acabam gerando formas de relação e afetos nesse processo – tal qual a foto Polaroid ou o filme Super-8, a forma como a imagem é reproduzida por mídias específicas gera vínculos afetivos, marcando períodos históricos. A baixa resolução da imagem encaminha-se para uma obsolescência, uma forma de transmissão de dados vinculada a um período logo fadada a uma ossificação no tempo e na memória. Assim, essa estética que remete às webcams e programas de comunicação à distância traz muito forte a noção da construção de uma ponte, um “teletransporte”, uma simulação da presença real e das relações, mas também um marco no tempo e na história pessoal.

A paisagem, que evoca o lugar e a contemplação, e o retrato, que remete ao contato, aliados à nossa frágil capacidade de reter o tempo presente, o momento vivido e as relações inerentes a ele, trazem em si uma potencialidade de relações ou narrativas. Esta é construída através da união de imagens disjuntas – procedimento que está na base da construção da linguagem cinematográfica, e ao qual Amélia se refere como uma referência, que podemos observar já nos primórdios da montagem, como as experiências de Lev Kuleshov de criar seqüências de imagens não-relacionadas para criar significado, em seguida levadas a maiores extremos por Sergei Eisenstein. Significativamente, a aproximação que ela faz com essa linguagem é através de David Lynch, conhecido por suas construções narrativas oníricas, fragmentadas. Amélia aproxima seus processos criativos: evocar uma imagem, quase como uma lembrança de um sonho, para então buscá-la ou construí-la:

“(...) eu acho que (minha obra) tem uma influência bem grande do cinema, de David Lynch. (...) tem um processo dele de criação que é bem parecido com o meu. Eu primeiro penso em uma imagem, uma forma, e depois eu procuro encontrar aquela forma, ou fazer, eu desenho, e depois outras vão se agregando. Eu junto muito material no meu atelier. Sabe quando tem uma lembrança, alguma coisa que tu sonhaste e não sabes o que é, mas fica aquela sensação? Eu trabalho a partir disso.” [3]

Propositalmente, as imagens postas lado a lado não são impressas sobre um mesmo suporte: há entre elas um hiato, ainda que sutil – uma marca, uma lembrança da impossibilidade ou virtualidade desses encontros, dessas presenças simultâneas, uma ênfase na ruptura temporal e espacial, marcando enfaticamente as diferenças de territorialidades, tanto física quanto emocional.

A exposição “Através” reflete, em sua materialidade, a trajetória de Amélia, que possui sua origem na pintura. Praticamente todo artista plástico, mesmo que inconscientemente, organiza sua poética através de uma genealogia pictórica. Em Amélia, essa matriz é explícita:

“(A escolha dos materiais) tem muito a ver com pintura. No meu mestrado fiz um trabalho de pintura, com justaposição de vários materiais, pela questão dos procedimentos da pintura mesmo: o brilho da pintura, o opaco, a transparência... É por isso que eu escolho, e também pelo apelo tátil, sensual desses materiais.”

Os procedimentos pictóricos permeiam toda a construção da obra, mas são mais explícitos no uso de planos de cor, placas translúcidas ou com uma opacidade ambígua – pois não se vê através delas, mas contêm o entorno em que estão inseridas. Neste aspecto, o observador é um dos elementos do ambiente que cerca as obras e nisso constitui um retrato fugaz, em que o observador vê as obras e é visto por si mesmo contido nelas, criando mais uma camada de relações ou de significados. Em outras, por sua tridimensionalidade, este reflexo está latente, mas não se consuma, criando um ponto cego em que o observador é, através de um artifício, apartado do lugar da imagem. A natureza da memória humana é distinta: algumas informações não são assimiladas de forma definitiva, perdendo-se. Algumas memórias de nossa existência são inexoravelmente esquecidas. Da mesma forma, essas placas reproduzem uma memória fugidia, que evola-se, uma vez que não retêm a imagem do observador – e cabe a ele guardá-la.

Mas o que mais fortemente permeia essas obras, além da forte presença da linguagem da pintura, são os afetos, as relações e conexões possíveis, as ausências. Vemos a possibilidade de perceber um lugar e imaginar-se nele, ou esvaziar-se ao contemplá-lo, e percebemos a proximidade falaciosa de pessoas queridas, nas quais transparece um anseio pela presença, pelo contato e que, embora captadas de tão perto estão fora de alcance, permeadas por superfícies que nos devolvem nosso próprio olhar. É nesses trânsitos, nesses interstícios, que a poética de Amélia mais se torna presente, tocante.

 

[1] SMITHSON, Robert. Uma sedimentação da mente: projetos de terra. In FERREIRA, Gloria.  COTRIM, Cecilia. (orgs) Escritos de artistas: anos 60/70. Rio de Janeiro: Zahar, 2006. Pag. 182.

[2] Embora tenha antecedentes, por exemplo, em Albrecht Dürer (séc. XV), com “Montanhas da Itália” uma aquarela de 1495, a paisagem começa a tornar-se um gênero, efetivamente, a partir do começo do séc. XVII, com pintores como Nicolas Poussin e Claude Lorrain.

[3]  Entrevista com a artista realizada em 14 setembro de 2010.

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